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Berlinda da Condolência

Berlinda da Condolência: A Investigação Evidencia que Amanhã é Outro Dia
          Esse trabalho, idealizado como tarefa para a faculdade no final de 2023, reflete sobre aspectos da cultura punitivista em nosso país, e a trivialidade com que óbitos são assimilados pelo público através da mídia, sendo, por vezes, utilizados como pouco mais que uma oportunidade para os espectadores de exibirem os próprios posicionamentos morais entre seus pares, alheios à individualidade da vítima, mas sim projetando-se como antagonistas ou aliados do conceito que essa morte possivelmente representa.
          Tendo essa finalidade em vista, notícias de mortes anônimas divulgadas online pela imprensa em tom alarmista, mas frequentemente desprovidas de contexto, causam uma urgência popular momentânea de desvendar qual era a identidade, idade, aparência, classe social e estilo de vida da vítima, assim como as circunstâncias que acarretaram o falecimento, para que o critério de matabilidade seja devidamente aplicado. Esse juízo, carregado de estigmas, precede qualquer sentimento de compaixão pela vida perdida. O pesar não compartilha lugar com a dúvida, depende do desvelo. Apesar disso, a curiosidade que se manifesta é datada, posto a velocidade com que novas tragédias surgem, mais ou menos impactantes. Se no caso os fatos não revelam-se com rapidez, a conclusão fundamentar-se-á em suposições para que aconteça. A relação com o acontecimento é rasa, rápida e utilitária; um artifício. Nesse meio tempo, sob o sudário plástico, o cadáver paira numa zona cinzenta de indefinições, até que chegue o veredito. A morte é administrada em rotas e não, precisamente, em ritos.
          Aforismos prontos e irrefletidos são repetidos por parcela significativa da população, que buscam salientar, aos olhos de outros vivos (e também integrantes do tribunal popular), o caráter da própria conduta particular e irretocável. “Bom sujeito é que não era”, "entrou na vida errada porque quis", "bandido bom é bandido morto", "um a menos; CPF cancelado", “se estivesse na igreja à essa hora…”. O corpo fresco de outrem, no feed ou no chat, torna-se totem, cadáver troféu para receber como roupagem o símbolo da veracidade consequencial da conduta anti-meritocrática. Essas falas traduzem que "através do seu mau, expresso meu bem; através do seu descontrole, eu exibo minha ponderação criteriosa com as escolhas de vida que tenho; fomos diferentes". As oposições são funcionais pro cotejo da moralidade de "cidadão de bem". A dinâmica rasteja sobre a superfície fina das questões políticas profundas, se aproveitando dos acontecimentos trágicos que à confrontam como oportunidade para sínteses pífias de para onde o mau-caratismo dos Outros pode conduzir o livre arbítrio, e afirmar para si mesmo sua crença e perspectiva perante complexidade da vida.
          Depois de usado, o corpo e a ocorrência são descartados pelo povo na pilha de infortúnios produzidos por um mundo que, dessensibilizado, clama pelo salvador que "não volta logo" para dar fim ao torpor dos eventos. Quanto a eles nada podem fazer, a não ser reprovar e evitar o envolvimento. “Que bom que não tinha como ser conosco”.
          Já é amanhã; o que passou, passou. Bom dia!
Com 30x30cm, a obra apresenta corpos ocultos, no limbo do julgamento. Como base foram usadas duas tábuas de MDF sobrepostas. Para a modelagem dos corpos usei papel higiênico torcido, cobertos com pedaços de saco de lixo recortados. Os pingos de chuva são de cola branca. As imagens internas (as seis das laterais são fotos que tirei no bairro que morava antigamente, e as das pontas são reportagens printadas) foram impressas em papel de envelope, á laser. As mensagens escritas só podem ser lidas através do uso da lanterna UV, instrumento geralmente usado na investigação pericial.

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